terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Sobre o socialismo



Ruy Mauro Marini
Fuente: Archivo de Ruy Mauro Marini con la anotación "(1991-1992)".



I - O SOCIALISMO COMO PROCESSO HISTORICO
A crise a que ingressaram, na segunda metade da década passada, a maioria dos regimes socialistas pode ser objeto de duas considerações. A primeira consiste em não perder de vista que ela é parte de um processo teórico e prático, no qual se articulam os diferentes movimentos que, no plano das idéias e da luta social e política, realizaram a crítica do capitalismo, como modo de organização das relações humanas. De Sismondi à esquerda ricardiana, de Owen a Marx, de Kautsky e Hilferding a Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky e Gramsci, a teoria socialista pôs a nu os fundamentos da economia capitalista e da sociedade burguesa, evidenciou sua perversidade estrutural e a expropriação do trabalho social que elas propiciam, armou ideologicamente os povos que lutaram contra isso. E foram muitos esses povos, desde os operários parisienses de 1871 e os bolcheviques russos até as massas espoliadas da China, de Cuba, do Vietnam, de Angola e da Nicaragua.
Mais de um terço da humanidade optou, em seu momento, pelo rechaço ao capitalismo e em favor de um desenvolvimento social orientado à supressão das desigualdades de classe e à implantação de uma democracia radical de massas. Sob essa bandeira, mesmo suportando o isolamento e a as agressões internacionais, mesmo partindo de um atraso econômico e social sem paralelo entre as grandes potências ocidentais, a União Soviética conquistou em pouco mais de trinta anos uma posição privilegiada no cenário mundial. Em todos os países que seguiram esse rumo, as necessidades básicas da população, em matéria de educação, saúde e moradia, foram satisfeitas e se acabaram as ondas de fome e o desemprego.
Não é, pois, tarefa simples apagar o socialismo da história e muito menos convencer a imensa maioria da humanidade, para quem a solução dessas questões aparentemente primárias está ainda pendente, que o socialismo não foi mais que o equívoco daqueles que não compreenderam que a história havia acabado. Para essa humanidade explorada e carente, a história nem sequer começou. O camponês nordestino tenta entrar nela todos os dias, amontoando-se nos paus-de-arara, para descobrir, nas favelas do Rio ou de São Paulo, que a entrada continua a lhe ser negada. A segunda consideração sobre o que ocorre no mundo socialista implica perguntar-se se a crise do chamado "socialismo real" invalida a busca de formas superiores de organização social, a que assistimos há quase dois séculos, e lhe põe fim, ou se representa antes mais um desses momentos de radical auto-crítica, que estão presentes em toda a história do socialismo e dos quais ele emergiu com criatividade renovada. Foi assim após a derrota da Comuna de Paris e a dissolução da Primeira Internacional, do que surgiria a difusão do movimento socialista na Europa e a fundação da Segunda Internacional. Foi assim quando, ante os acontecimentos da guerra mundial, a Segunda Internacional se dividiu para defrontar-se, em seguida, com a primeira revolução socialista vitoriosa na Rússia e com a formação da Internacional Comunista. Foi assim depois de Yalta, quando, insurgindo-se contra os limites que o compromisso entre soviéticos e norte-americanos queria impor-lhes, iugoslavos e chineses proclamaram seu direito ã revolução socialista. Foi assim, na América Latina, até o povo cubano dar ao traste com improbabilidades teóricas e geográficas e, em todo o mundo, até o Vietnam apontar com o dedo a nudez do imperialismo.



É porque sabia disso que Marx podia comparar a revolução socialista a uma toupeira, que passa boa parte de sua vida trabalhando as entranhas da terra. Mas é por isso também que, num período como este, ele afiava a arma de sua crítica, dedicando-se à sua obra maior, ao mesmo tempo que se comprometia inteiramente com as novas formas que assumia então, com os partidos operários, o desenvolvimento do socialismo na Europa.


O capitalismo e a revolução burguesa


A maneira pela qual se tende a colocar, atualmente, a luta entre o socialismo e o capitalismo, como se se tratasse de dois sistemas econômicos abstratos, dissociados dos processos reais de luta de classes e suscetíveis de comparação em termos de mera eficiência, é totalmente enganosa, na medida em que leva a ignorar os interesses reais que inspiram um e outro e a fazer caso omisso da historicidade de cada um. Não era este o ponto de vista de Marx, que por isso o vinculou à emancipação da classe trabalhadora e o concebeu como uma nova e mais alta etapa histórica, correspondente à recuperação em um nível superior da propriedade individual —a qual representa o ato supremo de afirmação do homem frente ao mundo que o rodeia e se mostra tanto mais efetiva quanto maior é o grau de cooperação sobre o qual ela repousa [1]. Não era tampouco o ponto de vista de Lenin, que, partindo da noção do socialismo como processo histórico, o assumia como uma das características centrais da nova etapa em que entrara a humanidade e que ele definia como sendo a era do imperialismo e das revoluções proletárias triunfantes [2].
Neste sentido, é útil ter em vista certas características que a era capitalista apresentou, no curso do seu desenvolvimento histórico. Configurando-se a meados do século XVI, ela não consagra ainda a hegemonia daquela forma de capital que lhe iria conferir seus principais atributos —o capital industrial, que reveste então o caráter de capital manufatureiro. Pelo contrário, este é ainda uma forma subordinada ao capital comercial, embora seja ali onde o comércio —em particular, o comércio exterior— impulsiona com mais força o desenvolvimento industrial, ou seja, na Inglaterra, que o capitalismo engendra mais rapidamente os fenômenos que o conduzirão ao seu pleno desenvolvimento: a revolução burguesa, que lhe permitirá utilizar o Estado para abater os obstáculos que o velho mundo feudal lhe opunha e para criar mecanismos de proteção e estímulo ao seu próprio crescimento; e a revolução industrial, que acelerará a transformação da indústria manufatureira em indústria fabril e levará o capital industrial a subordinar a si as demais formas de capital existentes.
Durante a fase manufatureira, tem lugar a transformação maciça da propriedade privada individual, fruto do próprio trabalho, em propriedade privada capitalista, através da acumulação primitiva do capital, que implica a expropriação dos pequenos produtores rurais e urbanos pelos capitalistas e sua conversão em trabalhadores assalariados, obrigados a vender àqueles a sua força de trabalho. O lucro vai deixando progressivamente de ser o resultado de transferências de valor efetuadas entre diferentes modos de produção, levadas a cabo pelo capital comercial, para converter-se na parte do produto do trabalho que é apropriada pelos capitalistas, o que significa que ele vai sendo subordinado pela forma peculiar que resulta da exploração realizada pelo capital industrial —a mais-valia. Esta corresponde, essencialmente, à prolongação do tempo de trabalho mais além do tempo necessário para que o trabalhador reproduza o valor da sua força de trabalho, isto é, à produção absoluta de mais-valia; mas, desde um princípio —e a cooperação manufatureira o demonstra— a mais-valia se produz também de forma relativa, isto é, mediante a redução do tempo necessário à reprodução do valor da força de trabalho [3].
O capital comercial pode conviver com diferentes modos de produção, já que é na esfera da circulação que ele se apropria do fruto do trabalho alheio, mas não assim o capital industrial, que opera no plano da produção e tem que criar ali uma organização econômica especial. Compreende-se, assim, que, à medida que se desenvolve a burguesia manufatureira, o capitalismo se vá tornando incompatível com o modo feudal de produção e acabe por ser levado a postular a transformação deste. Mas se entende, também, que a revolução burguesa, que corresponde à luta da burguesia pela conquista do Estado, a fim de levar a cabo essa transformação, só tenha lugar uma vez já iniciado o desenvolvimento capitalista. Ela se verificará, na Inglaterra, a meados do século XVII, no período que se estende entre a revolução de 1640, que dá origem à ditadura cromwelliana, e a chamada "revolução gloriosa" de 1688-89, que instaura a monarquia constitucional —expressão institucional da aliança entre a burguesia e a nobreza feudal aburguesada, que seguirá se depurando até chegar, com o predomínio da Câmara dos Comuns sobre a dos Lordes, a fazer cristalizar a hegemonia burguesa ao interior do bloco dominante.
Na mesma época em que a revolução burguesa ocorre na Inglaterra, a França é sacudida também por uma guerra civil, a guerra da Fronda, que enfrenta duas facções da aristocracia feudal e da qual a burguesia emergente participa dividida. Seu resultado é o fortalecimento do poder real, que, situando-se acima dos conflitos de classes, encarna na monarquia absoluta de Luís XIV e, sustentando com uma mão os privilégios feudais, concede com a outra benefícios à burguesia, através de uma política protecionista e industrializante. Durante um século, enquanto a burguesia se espreme dentro do marco que lhe foi traçado —as manufaturas de Estado, a administração estatal e feudal, o comércio— os camponeses continuam oprimidos por um sistema cada vez mais parasitário e as cidades vêem crescer o artesanato pobre e o pequeno comércio, ao lado de uma massa de profissionais carentes de perspectivas. Ao sobrevir a revolução, a burguesia francesa será forçada a aliar-se, num primeiro momento, com essas classes e frações de classe e a levar até o limite o enfrentamento com a nobreza, arrastada a um movimento cujas reivindicações sociais e políticas sobrepassam de muito seus interesses específicos. Através de sucessivas tentativas de conformar novos blocos dominantes, ela lançará o país na instabilidade política e na radicalização das lutas de classes, que se prolongarão por quase um século, até a derrota dos operários de Paris, em 1871.
A estes processos, de certo modo paradigmáticos, poder-se-ia acrescentar o da frustrada revolução burguesa na Alemanha, que culmina, na segunda metade do século XIX, com a subordinação da classe à nobreza feudal, constringindo o seu desenvolvimento a um quadro marcado pelo militarismo e a necessidade de conquistar mercados exteriores. Todos eles estão mostrando que a afirmação do capitalismo em seu meio de origem, a Europa, traduziu-se em processos sociais e políticos variados, baseados em diferentes alianças de classes e realizados em um tempo histórico dilatado. Se tomássemos em consideração o modo pelo qual a burguesia se converteu em classe dominante e impôs nacionalmente o seu modo de produção nos Estados Unidos e na América Latina, teríamos diante de nós um mosaico de situações, que só a nível de elevada abstração podem ser tratadas como fenômenos de uma mesma cepa.
O que importa assinalar, aqui, é que o período de transição do capitalismo estendeu-se por mais de dois séculos e só é superado uma vez assentada a dominação burguesa e concluída a revolução industrial. Nesse ínterim, o capitalismo ensaiou diferentes formas políticas, centradas em torno à idéia da democracia representativa, e promoveu uma revolução cultural, que consagrou alguns conceitos-chave: indivíduo, mercado, progresso, ciência. A partir da segunda metade do século XIX, a história se converte de fato em história do capitalismo, tornado enfim sistema universal, e o horizonte do pensamento humano passa a ser cada vez mais o que corresponde ao mundo burguês. O socialismo como período de transição.
O socialismo pode entender-se como o período de transição de uma nova era histórica, caracterizada pela superação da propriedade privada em favor de uma nova forma de propriedade individual, baseada na socializacão dos meios de produção, e pela substituição da burguesia como classe dominante pelo proletariado, i.e., a classe dos trabalhadores assalariados, cujo modo de apropriação da riqueza corresponde à ausência de propriedade privada dos meios de produção. A essa dominação de classe corresponde, no plano político, uma forma de democracia ampliada, correlativa ao fato de que a nova classe constitui a imensa maioria da sociedade, e —na medida em que qualquer dominação estatal supoe o uso da força, se é preciso, para subordinar as demais classes e se manifesta em relação a estas como ditadura— uma nova forma de ditadura. Democracia socialista e ditadura do proletariado são, neste sentido, apenas dois lados da mesma moeda.
Sendo um período de transição, o socialismo é já parte integrante dessa nova era histórica, do mesmo modo que o capitalismo comercial e manufatureiro é parte já da história do capitalismo. Não procede, portanto, considerá-lo como mera articulação de modos de produção, como querem o marxismo estruturalista francês e —tendendo a colocações de tipo neo-dualista— alguns teóricos latino-americanos. Um período de transição deve ser visto a partir do novo, daquele modo de produção que está surgindo e que faz isso, não meramente através da combinação com os que o precederam, mas sobretudo do enfrentamento e da luta contra êles. A história desse período é a história dos êxitos e dos fracassos desse novo modo de produção e da classe que lhe corresponde, em sua projeção para o futuro.
Em se tratando do socialismo isso é ainda mais certo. Com efeito, o capitalismo —que corresponde apenas a uma variante da propriedade privada— surge e se afirma dentro do modo de produção feudal, decorrendo algum tempo antes que a supressão deste se converta em requisito para o seu desenvolvimento. Só então a revolução burguesa, a conquista do poder, aparece como necessária e ainda assim, se as condições existentes não permitem que esta se realize, o capitalismo pode seguir seu caminho, embora por vias mais tortuosas —como ocorreu, por exemplo, na Alemanha— até a total extinção do sistema anterior.
Outra é a situação com que se enfrenta o socialismo, para o qual a conquista do poder é condição sine qua non de existência. Sem dúvida, o capitalismo senta as premissas do socialismo, ao concentrar a propriedade dos meios de produção e favorecer, assim, a expropriação do capital e a socialização do processo de trabalho; ao proletarizar as grandes massas da população e prepará-las, deste modo, material e ideologicamente, para a propriedade individual baseada na posse coletiva das fontes de riqueza; ao desenvolver as forças produtivas e possibilitar, por essa via, o domínio do homem sobre a natureza e a transformação do trabalho em ato plenamente criador. Mas, até que intervenha a revolução proletária, todos esses processos não fazem senão acrescentar o poderio dos capitalistas e tornar mais pesados os grilhões que acorrentam os trabalhadores ao capital.
A conquista do poder pelo proletariado torna possível imprimir um signo distinto a esses processos, mas de modo algum substituí-los por outros, da noite para o dia. Enquanto período de transição, o socialismo significa a continuidade deles, por certo tempo, e sua gradual transformação em algo distinto. Mesmo uma medida de crucial importância para a sobrevivência da revolução proletária, como a supressão da classe burguesa, não pode ser senão o resultado de uma evolução, apressada e orientada por medidas revolucionárias, como a extinção do direito de herança [4]. Com mais razão ainda, a transformação da base material da sociedade humana só em escala limitada pode ser objeto de atos de vontade e decisões superestruturais, condicionada como está ao desenvolvimento das forças produtivas. O drama do socialismo dito real decorre do fato de que partiu de condições materiais e espirituais ainda incompletas e tentou (na maioria das vezes, por pressão externa) superá-las prematuramente —ao suplantar, por exemplo, os mecanismos de mercado pela planificação centralizada ou ao integrar em um só Estado etnias conflitantes.
Isto não implica subvalorar o fator subjetivo. Elemento essencial num período de transição é a luta ideológica, mediante a qual a classe emergente concebe e impõe à sociedade uma nova escala de valores, uma nova moral, uma nova visão do mundo. Assentada em condições de existência distintas às da nobreza, a burguesia não encontrou dificuldade para opor à ética aristocrática, justificadora da ociosidade e do parasitismo social, uma filosofia do trabalho, do mercado e do lucro —tanto mais que, possuidora de riqueza, a burguesia pôde construir o seu próprio sistema educativo e colocar a seu serviço parte da elite científica e artística oriunda da nobreza; na Inglaterra, onde a revolução burguesa ocorreu mais cedo e essa situação não se configurava ainda totalmente, a burguesia precisou contrair com a nobreza um compromisso, que deixou marcas profundas em seu sistema político e administrativo. O proletariado, porém, cujas condições de existência — do mesmo modo que as da burguesia— derivam do capitalismo, se depara com obstáculos quase intransponíveis para transcender a cultura burguesa, mesmo depois da conquista do poder. Esta parece ser uma das tarefas mais árduas do período de transição, como percebeu Lenin, ao colocar-se a questão da revolução cultural [5]. Não resta dúvida de que o fracasso neste terreno constitui uma das causas principais da crise que vive o socialismo real, cabendo-lhe, portanto, lugar de destaque na reflexão marxista sobre ela.
O capitalismo caracteriza-se, desde sua origem, por sua vocação internacional, que faz do mercado mundial instância privilegiada para o desenvolvimento das suas contradições. Esse processo corresponde a uma fuga para a frente, o que quer dizer que o capitalismo não pode contar com o mercado mundial para superar efetivamente essas contradições, mas tão só para ampliar o seu espaço geográfico e histórico e, portanto, para torná-las cada vez mais universais. A conquista de novos territórios e a extensão do seu império a um número crescente de nações, que se iniciam já na fase da acumulação originária e continúam ao longo do seu desenvolvimento, permitem-lhe amenizar o perfil acentuado que elas começam a adquirir nos centros do sistema, à custa da transferência à periferia de seu potencial explosivo e auto-destrutivo.
Esta é a razão pela qual a ruptura do capitalismo e a passagem à era socialista começaram nos países mais atrasados e continuam a se produzir ali, onde a exploração capitalista dispensa artifícios e disfarces, além de se exercer sobre uma massa de trabalhadores menos imbuídos, ainda, da ideologia burguesa. Esse fenômeno implica um duplo custo para o socialismo nascente: força-o a se implantar sobre uma base material frágil, pouco capacitada para enfrentar a competição com o mundo capitalista, e a depender da mobilização de povos que não acedem ainda à plenitude da cultura burguesa, embora possam já apresentar muitos dos seus vícios. Isso é possível porque esses povos não são, como pretenderam alguns, uma página em branco (a versão socialista do bom selvagem); pelo contrário, sua cultura está marcada pela desigualdade social e pelo valor de câmbio, sendo-lhes fácil assimilar o que o capitalismo lhes oferece de pior: a possibilidade de se oprimirem e explorarem uns aos outros, com base na posse de bens e, sobretudo, do dinheiro.


Cidadania burguesa e cidadania socialista


Assim, a conquista do poder não implica a possibilidade de transformar, de golpe, as estruturas sócio-econômicas e, mais grave ainda, coloca à cabeça do Estado uma classe cujo desenvolvimento, no seio da sociedade anterior, não favoreceu o seu amadurecimento ideológico, fundado na conquista e na superação da cultura burguesa. A crise que está atravessando, hoje, o socialismo nos obriga a refletir sobre esse problema e essa reflexão aponta no sentido de colocar de outra maneira a questão da vanguarda, ou do partido, e sua relação com as massas. Com efeito, num movimento inverso ao que realiza Marx, entre o fracasso das revoluções de 1848 e a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, e que se continuou na Internacional Socialista, os revolucionários foram levados —sob a influência da Revolução russa e a necessidade de lutar contra as estruturas políticas rígidas dos países atrasados— a fundar a sua estratégia na dinâmica da vanguarda e confiar que a gestação de uma nova ética e uma nova cultura, no seio do partido, seria capaz de assegurar a realização do socialismo. A vida está mostrando que, ainda que mantenha intacta sua inteireza ideológica e sua vocação revolucionária, o partido não pode substituir a classe na construção de uma nova sociedade. Esta é uma tarefa que, supondo sempre o emprego de métodos revolucionários —dos quais depende a possibilidade mesma de surgimento do socialismo, como vimos— tem que se basear na prática coletiva das massas e obedecer às leis gerais dos processos sociais.
Não se trata de negar a validade do partido, como instrumento de luta das massas, nem seu papel de condutor e educador. Trata-se, apenas, de entender que o amadurecimento da capacidade revolucionária das massas depende, antes de tudo, da sua própria experiência de vida. É justo e correto que o partido exerça o papel de fermento e farol nas lutas sociais, que desenvolva agitação e propaganda, que se preocupe da formação de quadros. Mas, em última instância, a sorte da revolução depende da vivência real que tenham as massas do obstáculo que o capitalismo representa para a realização humana e dos limites inherentes aos métodos reformistas. Para tanto, não basta a agitação e a propaganda: as massas precisam educar-se praticamente e, neste sentido, devem ser estimuladas a tentar a superação dos males do capitalismo exercendo amplamente os mecanismos que ele afirma servir para este fim ou aqueles aos quais ele não pode se opor, sem desmascarar sua natureza discriminatória e excludente.
Para dominar as forças produtivas, para distribuir a riqueza, para exercer a condução do Estado no socialismo, é necessário que as massas dominem os mecanismos que a burguesia utiliza e os submetam à sua crítica prática. Esse caminho deve conduzi-las a se apoderarem de fato da grande conquista democrática que significou o advento da era burguesa —o conceito de cidadania, isento em teoria das exclusões que o restringiram, no passado, a grupos sociais, étnicos e sexuais definidos. Mas somente em teoria, já que, ainda que as lutas dos trabalhadores, das minorias étnicas e sexuais, das mulheres e dos jovens haja ido ampliando a vigência real desse conceito, ele sofre, no capitalismo, as limitações inevitáveis que se derivam das desigualdades de classe e das diferenças econômicas. A democracia socialista, ao se dar como tarefa a supressão dessas desigualdades e dessas diferenças, aponta a realizar à plenitude o conceito de cidadania e dar-lhe foro efetivamente universal.
Esta é a grande contribuição do socialismo à história humana e o que o diferencia radicalmente do capitalismo, intrinsecamente incapaz de conduzir a esse objetivo. A cidadania socialista, expressão da perfeita igualdade política, é a condição necessária para que os homens desenvolvam integralmente a sua diversidade individual e estabeleçam entre eles relações sociais de uma riqueza e complexidade sem paralelo no passado. É nesse sentido que, com Marx, é possível falar, não do fim, mas do começo da história, vencida enfim essa pré-história de exploração e opressão do homem pelo homem que nos toca ainda viver.


II - SOCIALISMO E DEMOCRACIA


Na história das idéias, socialismo e democracia não têm a mesma origem nem tendem necessariamente à identidade. Tanto Platão quanto Saint-Simon foram capazes de imaginar sistemas socialistas de caráter marcadamente autoritário, do mesmo modo que a ideologia burguesa, ainda em suas manifestações mais avançadas, pôde colocar-se a questão da democracia sem vinculá-la ao socialismo. É o socialismo moderno, que surge como crítica ao processo e à idéia da revolução burguesa, com Babeuf, Blanqui, a esquerda ricardiana, e culmina com o marxismo, que relaciona intimamente os dois conceitos e os torna inseparáveis.
Inseparáveis, mas não idênticos. Em sua expressão superior, isto é, enquanto governo das maiorias, a democracia supõe o socialismo, o único modo de organização social que, por se assentar na propriedade coletiva dos meios de produção, assegura a igualdade política à imensa massa dos produtores [6]—embora, como indicou Marx, não lhes garanta ainda a igualdade econômica. Há mais: a democracia plena não só tem o socialismo como premissa, como também conduz a ele, a menos que se pudesse conceber uma maioria que governasse em benefício da minoria, ou seja, contra ela própria.
A interdependência que, assim, se estabelece entre a democracia e o socialismo não deve, porém, obscurecer o fato de que, longe de constituirem uma identidade, eles correspondem a dois conceitos —e, se os conceitos são bons, a duas realidades— perfeitamente diferentes, ainda que unidos por um nexo indissolúvel. Enquanto relação dialética, as realidades que aí se contêm, embora mutuamente determinadas, têm vida própria, podendo se desenvolver de maneira assimétrica e até contraditória. É assim como, no curso da revolução proletária, nos deparamos com situações em que a defesa do socialismo se realizou à custa da democracia (o comunismo de guerra soviético, 1918-1921, por exemplo) ou em que as exigências da democracia impuseram limites à socialização (a Nicaragua sandinista).
Em geral, as críticas equivocadas —de esquerda ou de direita— às revoluções proletárias nascem da não compreensão do caráter dialético da relação socialismo-democracia. Pior ainda: elas não percebem que essa relação se realiza mediante processos nacionais, os quais, por suas determinações peculiares de ordem sócio-econômica e cultural, assím pela correlação de forças internacionais em que se enquadram, afetam o modo pelo qual ela se desenvolve, tanto quanto o tempo histórico, o momento particular do processo histórico global em que se produz cada revolução. No que tange à relação socialismo-democracia, a confusão quanto ao que é essencial ou contingente, ao que corresponde ao conceito ou à realidade a que ele se refere, não é, porém, exclusiva dos seus críticos. Há, em cada processo particular de revolução proletária, a tentação de converter em leis ou imperativos gerais o que não passa de características que lhe são próprias, tentação que se torna tanto mais forte quanto mais controvertidas são essas características — ou seja, quanto mais necessária parece a sua justificação. Foi assim com a coletivização forçada na União Soviética, a qual, sendo apenas o resultado do isolamento internacional do país e das lutas de classes que ali se verificavam, foi elevada por seus partidários mais entusiastas à condição de efeito de uma hipotética lei de acumulação socialista originária.
A realidade é que a expropriação violenta dos camponeses, à parte de que não ocorreu nas revoluções que se seguiram (na China, por exemplo, ou em Cuba), foi na União Soviética a expressão —e, de certo modo, o momento histórico de resolução— das contradições que se desenvolviam no seio da aliança operário-camponesa, as quais haviam dado já fruto com as requisições de grãos, próprias do comunismo de guerra. Quando formula a nova política econômica (NEP), que restabelecia o jogo do mercado para a produção camponesa, Lenin o faz precisamente para abrir ao desenvolvimento dessas contradições uma via pacífica, isto é, democrática.


As alianças de classes


Este é, sem dúvida, um elemento central no conceito de democracia e que lhe confere especificidade, independentemente do sistema econômico com o qual ele convive: o reconhecimento de divergências e choques de interesses entre os atores políticos (a democracia socialista não faz mais do que converter em atores políticos verdadeiros as grandes massas do povo, o que é coartado e reprimido por outras formas de democracia) e a possibilidade efetiva de que êles possam solucioná-los pacificamente, segundo a vontade da maioria. A partir do momento em que um ator impõe a outro uma solução de força, ele abandona o campo da democracia, por muito que, aos olhos de seus contemporâneos ou na perspectiva histórica, essa imposição se justifique como medida destinada, a longo prazo, a garanti-la. Pode-se discutir se, caso não recorresse à coletivização forçada, a União Soviética teria sido capaz de levar avante a sua edificação socialista —que, como vimos, é o caminho para estabelecer sobre bases firmes a igualdade política, condição necessária da democracia plena. O que não se pode discutir é que a coletivização forçada constituiu um modo não democrático (e, portanto, ditatorial) de solucionar a crise a que fôra conduzida a aliança operário- camponesa na URSS de então.
Nesta perspectiva, a democracia —para além das instituições jurídicas e políticas em que se expressa— configura um modo, um método para solucionar as divergências entre os atores políticos, isto é, em termos globais, entre as classes sociais. Entre todas? A visão leninista, inscrita em um contexto de guerra civil e de agressão internacional, responde à pergunta restringindo a democracia ao campo da revolução, à aliança operário-camponesa, e a gemina com a ditadura a ser exercida sobre a burguesia, que promove essa guerra e essa agressão. Deixemos de lado, por agora, a questão de saber se essa dualidade é indispensável ao conceito de democracia socialista e ocupemo-nos, antes, da maneira pela qual Lenin concebe o exercício desta.
A aliança operário-camponesa na revolução russa não é uma aliança entre iguais. Isto fica claramente posto na Constituição de 1921, que sobredimensiona a representação política do proletariado em detrimento do campesinato. Ela é uma aliança da classe revolucionária —o proletariado— com a imensa massa russa oprimida e explorada, constituida essencialmente pelos camponeses, e que se baseia na insubmissão destes a essa opressão e exploração, a qual faz também deles revolucionários. Mas, enquanto os camponeses podem contentar-se com o reconhecimento do seu direito de propriedade, situando-se assim no marco da revolução burguesa, o proletariado quer ir além e suprimir a propriedade dos meios de produção, como modo de garantir a igualdade política e, portanto, a liberdade. A questão reside, para o proletariado, em convencer o campesinato a ir contra seu interesse imediato —a propriedade privada— em troca da satisfação de seu interesse mais geral: o fim de qualquer forma de opressão e exploração.
Convencer significa persuadir. O proletariado, por sua situação objetiva na sociedade, não está em condições de submeter os camponeses pela força, mesmo que isso fosse feito em benefício destes. Mais ainda: submetê-los pela força contrariaria a vocação democrática do proletariado e poria em xeque a aliança de classes. Há, pois, que recorrer à persuasão mais que à coerção, como método de governo, e isto é o que faz do Estado operário-camponês um Estado democrático, vale dizer um Estado cuja característica central é a solução das divergências entre as classes através da discussão e do consenso. A forma e a duração da transição socialista estarão determinadas, antes de tudo, pelo modo pelo qual se enfrentam as divergências e pelo tempo que tome a sua resolução. Até então, as duas classes terão que conviver pacificamente, fazendo-se mútuas concessões, e o farão no contexto de instituições estatais que assegurem essa convivência. A convivência democrática não impede, porém, e antes exige iniciativas tendentes a modificá-la. O contrário disso seria a estagnação, o pior inimigo dos grandes projetos históricos. Enquanto essas iniciativas se mantenham no plano da persuasão, elas não afetam em nada o caráter democrático do Estado. Bastaria, entretanto, que assumissem cunho coercitivo para que a democracia fosse violada.
Isto leva a que nos perguntemos o que é a lei, em um Estado democrático. Instrumento mediante o qual ele fixa objetivos e estabelece procedimentos, sob pena de sanção, isto é, de modo coercitivo, a lei não poderia existir em um regime em que todos fossem iguais e no qual ninguém tivesse o direito de impor alguma coisa a outrem. Para que a lei exista, é necessário que a tomada de decisões em uma sociedade não se distribua equitativamententre entre as classes que a compõem —o que nada tem a ver, evidentemente, com a idéia da igualdade de todos perante a lei, que a revolução proletária herda da revolução burguesa. Democracia e igualdade política não são, pois, idênticas. A democracia implica desigualdade, pelo menos no plano da tomada de decisões, pelo que ela se exerce necessariamente como dominação de uma classe sobre outra. A especificidade da democracia socialista está em que essa dominação se exerce mediante a persuasão e não mediante a coerção. É por isso que, para Lenin, a lei não é simplesmente um imperativo que comporta uma sanção (como ocorre na democracia burguesa), mas também e sobretudo —enquanto meio de ação da democracia proletária— um instrumento educativo, que fixa objetivos e os explica, cabendo ao Estado (e ao partido revolucionário) aplicá-los através da persuasão. A lei ideal na democracia socialista é aquela que contém mais preâmbulo do que artigos e que serve de ferramenta aos agitadores e propagandistas, para induzir condutas voluntárias. No limite, a lei ideal não é mais do que uma forma mais desenvolvida de educação política [7].


Alianças e compromissos


O método democrático de governo é possível no quadro de relações de classes que enfrentam um inimigo comum e que compartilham objetivos históricos, sendo por isso capazes de consenso. Relações dessa natureza conformam uma aliança, cuja expressão política é a democracia. Diferente é a situação quando se trata de classes cujo relacionamento se baseia na opressão e na exploração de uma pela outra. Neste caso, o método por excelência de governo é a coerção, por muito que a resistência e a luta da classe dominada obriguem a classe dominante a lhe fazer concessões e a recorrer, senão à persuasão, pelo menos ao engano, com o fim de limitar o uso indiscriminado da coerção. Com efeito, Estado algum pode assentar-se exclusivamente na coerção. Mesmo o Estado escravista, baseado numa relação de opressão-exploração quase indisfarçável e que, por isso mesmo, se mantém sempre com as armas na mão, mesmo esse Estado é forçado a empregar meios não coercitivos —a tradição, a idéia da inferioridade do escravo, etc.— para exercer o seu poder. Com o advento da sociedade burguesa, isto se acentuará, por estar a classe dominante na obrigação de conciliar a opressão e a exploração das outras classes com o projeto histórico que ela lhes propôs, baseado nas noções de igualdade e liberdade, assim como de progresso. Esta será a tarefa a ser desempenhada pela ideologia burguesa.
Arma privilegiada na sua luta pela conquista do poder político, a ideologia constitui também, para a burguesia, instrumento fundamental para exercê-lo. Nenhuma classe na história, antes dela, concedeu-lhe papel tão decisivo em seu modo de dominação. Valendo-se dela, a burguesia realizou um esforço gigantesco, com o fim de converter a igualdade em subordinação igual de todos à lei; a liberdade, na livre disposição da própria força de trabalho; e o progresso, em perspectiva individual de promoção social. A pedra de toque dessa construção ideológica foi o conceito de cidadania —ou a titularidade individual dos direitos políticos— mediante o qual a burguesia escamoteou as classes sociais e destinou a cada um o papel de participante isolado na vida do Estado. O indivíduo foi confrontado assim, sem qualquer defesa, ao Estado, fonte e guardião da ordem estabelecida, que cumpre sua função mediante o monopólio da força [8]. A democracia socialista, que rompe com o individualismo burguês e se assume como expressão da luta de classes, renuncia também à mistificação ideológica como instrumento de dominação. Vimos já a rude franqueza que reina no seio da aliança operário-camponesa, baseada no interesse comum de pôr fim à opressão e à exploração, mas na qual subsistem ainda divergências enquanto a interesses de classe imediatos. Em relação à burguesia, com a qual não compartilha qualquer objetivo histórico ou interesse geral de classe, o proletariado não pode praticar uma política de aliança: pelo contrário, ele está obrigado a submetê-la pela força, pela coerção, ao seu projeto histórico.É natural que —numa época em que a correlação mundial de forças a favorece— a burguesia se oponha duramente aos movimentos nacionais de revolução proletária, mediante o fomento à resistência interna e a agressão exterior. Nesse contexto, a dualidade democracia proletária —ditadura do proletariado, tal como a formulou Lenin, adquire plena vigência. Persuasão e coerção apresentam-se, então, como duas linhas claramente diferenciadas, dois polos opostos e complementares da ação estatal.
Mas nem a resistência da burguesia se exerce de maneira constante e uniforme nem a correlação mundial de forças tem preeminência sobre aquela que, internamente, vai construindo a revolução proletária. Assim, seja porque a burguesia fraqueja temporariamente na sua luta opositora, seja porque ela tem que se curvar a uma situação de facto, que não lhe permite insurgir-se, a democracia socialista pode —a partir de uma clara posição de força, isto é, de uma capacidade coercitiva inquestionável— fazer concessões à burguesia, bem como a setores de outras classes vinculados a ela, como os intelectuais ditos burgueses. Essas concessões não se confundem com as que intervêm ao interior da aliança operário-camponesa. Estas últimas são ilimitadas no seu conteúdo e no tempo, determinando por isso o caráter e a duração da transição socialista. As concessões à burguesia, inversamente, são condicionadas pelas exigências da transição, que fixam sua natureza e seus prazos; se exitosas, abrem ao proletariado e à burguesia a possibilidade de acordos específicos, os quais, sem configurar uma aliança —já que excluem objetivos históricos comuns— se definem mais exatamente como compromissos.
A política leninista praticou-os sem disfarces. Exemplos disso são o decreto de 1918 regulamentando a publicidade —o qual, como frisou o próprio Lenin, indicava claramente que o governo soviético não se dava como tarefa imediata a socialização total da indústria e do comércio— e os privilégios concedidos aos técnicos, no período da NEP. A revolução chinesa assegurou a sobrevivência das empresas capitalistas nacionais, pelo tempo de vida dos seus proprietários. Cuba manteve durante muito tempo intocado o pequeno comércio. E a Nicaragua sandinista —na linha indicada pelo governo socialista chileno da Unidade Popular— consagrou três formas de propriedade, na sua estrutura jurídica: estatal, cooperativa e privada.
Neste plano, o conceito de ditadura —enquanto regime de violência aberta de uma classe contra outra— não se aplica plenamente. Os compromissos representam uma forma de exercício do poder até certo ponto consensual, embora se estribem na capacidade material de coerção do Estado. A diferença das alianças, eles não envolvem questões relativas a propósitos históricos comuns e, antes, se referem a interesses de classe imediatos, claramente identificados e devidamente equacionados pelas partes. Entretanto, a importância do compromisso para o desenvolvimento da democracia socialista transcende o plano meramente tático e vai mais além do âmbito próprio às relações proletariado-burguesia. Efetivamente, para chegar a uma política de compromissos, o proletariado tem que haver solucionado, previamente, de maneira correta, a sua política de alianças: só um bloco revolucionário sólido assegura um Estado forte, condição sine qua non, como indicamos, do compromisso. Em outras palavras, a política de compromissos não é possível se a democracia não é plenamente exercida no seio da aliança, sem o que ela abriria flanco a manobras do inimigo. Nesta perspectiva, a política de compromissos não representa mais do que a irradiação da prática democrática do bloco revolucionário ao conjunto da sociedade. Através dela, mesmo a dominação baseada na coerção assume matizes mais suaves e permite a extensão limitada de práticas democráticas à própria burguesia. Ela abre, assim, em certa medida, caminho à universalização da persuasão, particularmente em relação às novas gerações. Por isso, o uso do compromisso, ali onde se torna possível, imprime um cunho mais democrático a toda a transição socialista, a qual, neste contexto —e somente nele— pode adotar de maneira ampla o pluralismo.
É para uma transição socialista que privilegia o compromisso que Marx concebe o programa exposto no Manifesto Comunista. Depois de mais de um século de lutas de classes, a maioria dos pontos ali incluidos foram total ou parcialmente aplicados no seio do próprio capitalismo, pelo menos nos países mais adiantados. Enganam-se, porém, os que pensam, por isso, que aquele era o programa da revolução democrático-burguesa. Basta constatar que, entre esses pontos, está a supressão do direito de herança para dar-se conta que ele visava a suprimir o pilar que sustenta toda a sociedade burguesa —a propriedade privada dos meios de produção.
A aparente modéstia e o gradualismo do programa do Manifesto decorrem da visão que tinha Marx do comunismo, enquanto fruto do próprio desenvolvimento histórico. A um nível de abstração mais alto, ele expressou essa visão no Prefácio à Contribuição, onde nos apresenta a passagem do capitalismo ao comunismo como uma sucessão quase natural de modos de produção. O capitalismo cria, nesse quadro, por obra de seu próprio desenvolvimento, as premissas do comunismo e é sobre elas que se apoia o proletariado para promover a transição socialista. Isso não exclui, de modo algum, o fato da revolução, vale dizer a conquista do poder político pelo proletariado. Efetivamente, para Marx, o Estado é a pá que o proletariado deve tomar nas mãos para remover as formas capitalistas, que obstruem a passagem da história. Essa idéia percorre toda a sua obra, está presente em O Capital (onde reivindica, por certo, o programa do Manifesto), na sua polêmica com os cooperativistas e, sobretudo, em sua reflexão sobre a Comuna de Paris. Ao reconhecer nesta a primeira expressão histórica do Estado proletario, Marx não faz mais (como observou Engels) que reafirmar o que o Manifestoexpusera, sem deixar dúvidas: a necessidade da revolução proletária como parteira do socialismo.


Os caminhos da revolução


É essa revolução necessariamente violenta? Marx admitia a possibilidade do caminho pacífico, baseado no compromisso, em países sem grande desenvolvimento da burocracia e do exército —ou seja, em países onde o Estado burguês não alcançara ainda plena maturidade. Em sua análise do problema, Lenin parte da visão do capitalismo em sua fase imperialista para sustentar que a via pacífica encontrava-se cancelada precisamente nos países onde parecera a Marx mais praticável (nos Estados Unidos, por exemplo). As reflexões posteriores de Lenin, retomadas pela III Internacional, farão do imperialismo a pedra de toque da estratégia da revolução violenta, que se estende ao Terceiro Mundo.
A história deu-lhe razão. Não há motivo, porém, para supor que a possibilidade da revolução pacífica não pudesse se recolocar, embora sobre bases diferentes das que estabelecia Marx. Num quadro caracterizado pelo fortalecimento constante do socialismo e pelo avanço indefinido do movimento revolucionário mundial, a correlação de forças internacional se tornaria inteiramente desfavorável para a burguesia. Com isso, estariam dadas as condições para as revoluções proletárias pacíficas, capazes de praticar em grande escala o compromisso e o pluralismo, poupando custos e sofrimento a toda a sociedade. Isto não é, obviamente, o que estamos vivendo, nos dias de hoje. Pior ainda, passamos por um período que não favorece tampouco uma estratégia ofensiva das forças socialistas, o que torna pouco provável, pelo menos a médio prazo, as revoluções violentas. Os revolucionários estão, pois, obrigados a buscar novas formas de ação, orientadas a pôr os trabalhadores em condições de resolver a seu favor o problema do poder, nas atuais circunstâncias.
Essas formas de ação, como sabemos os marxistas, não podem ser fruto de mera invenção, mas têm antes que se constituir na expressão consciente do movimento espontâneo das lutas de classes. Setenta anos de triunfos e derrotas do socialismo proporcionam uma vasta gama de experiências, cuja riqueza nossa reflexão está ainda longe de esgotar. Não há dúvida, porém, que elas nos fazem uma exigência fundamental: apreender, em sua expressão concreta e particular, a especificidade da relação socialismo —democracia e entender, em cada caso, como se colocaram as contradições que ela implica. Neste sentido, os acontecimentos nos exigem analisar as causas da crise do socialismo na União Soviética e na Europa oriental, sem lamentarmos demasiado a derrocada de regimes que, no fundo de nós mesmos, sabíamos incapazes de realizar as tarefas da transição socialista. É necessário, porém, ir mais além. Trata-se, para nós, de pesquisar e descobrir as perspectivas de transformação social que o atual desenvolvimento das forças produtivas —que tende à superar as diferenças entre a cidade e o campo, a homogeneizar em âmbito mundial as condições técnicas de produção e a internacionalizar o processo de trabalho— está abrindo. Trata-se, também, de investigar em que medida esse desenvolvimento, que privilegia o trabalho intelectual e os serviços produtivos, afeta o conceito de proletariado, pelas diferenciaões que introduz ao interior da classe trabalhadora industrial. Trata-se, sobretudo, de entender as novas formas de ação e os mecanismos de participação que as massas estão criando para intervir de maneira mais ativa no plano político. O controle operário, a cogestão e a autogestão das empresas; a luta eleitoral e a participação no Parlamento e nos governos locais; a participação e o controle popular sobre as políticas orçamentária, educacional, de saúde, de transporte; a democratização dos meios de comunicação e o rechaço a qualquer forma de censura; a crítica permanente às desigualdades de fundo econômico, étnico ou sexual —estes são alguns instrumentos de que as massas estão lançando mão, aqui e ali, para defender seus interesses, elevar o nível de sua cultura política e amadurecer o seu espírito revolucionário. É por essa via que elas se estão capacitando para o exercício de sua cidadania em um plano superior e preparando-se para —à diferença do que ocorreu nas revoluções socialistas realizadas até hoje— assumirem elas mesmas a direção do processo de transição socialista. O que é, ao fim e ao cabo, a única garantia segura de êxito que elas podem ter.




NOTAS






[1] Marx considera a propriedade como conceito social básico, tanto a nível abstrato, como enquanto critério de periodização da história humana. Assim, ele sustenta que "...dizer que não se pode falar de uma produção —e tampouco de sociedade— em que não exista alguma forma de propriedade, é uma tautologia. Uma apropriação que não se apropria nada é uma contradictio in subjecto" (Marx, Introducción general a la crítica de la economía política / 1857, Córdoba, Arg., Cuadernos de Pasado y Presente, p. 8). Referindo-se à pequena propriedade individual, que precede a propriedade capitalista (a qual, enquanto base da pequena industria, "é uma condição necessária para o desenvolvimento da produção social e da livre individualidade do próprio trabalhador"), ele assinala: "Este regime supõe a disseminação da terra e dos demais meios de produção. Exclui a concentração destes e exclui também a cooperação, a divisão do trabalho dentro dos mesmos processos de produção, a conquista e a regulação social da natureza, o livre desenvolvimento das forças sociais produtivas" (Marx, El Capital, México, FCE, 1973, tomo I, p. 647). Depois de examinar a passagem à propriedade privada capitalista e a supressão desta, ele conclui: "Esta não restaura a propriedade privada já destruída, mas uma propriedade individual que recolhe os progressos da era capitalista: uma propriedade individual baseada na cooperação e na posse coletiva da terra e dos meios de produção produzidos pelo próprio trabalho" (Ibid., p. 649).
[2] Esta concepção informa a sua teoria do imperialismo e se expressa na criação da Terceira Internacional, estando definida com singular nitidez em sua participação no segundo congresso dessa organização, em 1920, particularmente no informe internacional com que inaugurou o evento (Lenin, Obras Completas, México, Ediciones Salvador Allende, s/d., vol. 33, p. 339-357). Referindo-se a uma fase anterior do pensamento de Lenin, relativo a 1908-1913, um autor enumera assim suas preocupações com o desenvolvimento histórico-mundial: "o aguçamento das posiçoes de classes na Europa, o surgimento de movimentos anti-iimperialistas e, sobretudo, a perspectiva de `uma nova era de revoluções'". E. Raggionieri, "Lenin y la Internacional Comunista", Los cuatro primeros congresos de la Internacional Comunista, Córdoba (Arg.), Cuadernos de Pasado y Presente, 1973, p. XVII.
[3] São muitos os autores que separam mecanicamente, no tempo, essas duas formas de produção de mais-valia e desconhecem o fato de que a mais-valia absoluta é condição sine qua non do capitalismo, qualquer que seja a fase em que este se encontre. O desenvolvimento do sistema mostra que o mecanismo por excelência de produção de mais-valia absoluta é a prolongação da jornada de trabalho, enquanto que os métodos de produção de mais-valia relativa correspondem ao aumento da intensidade ou da produtividade do trabalho (isto é, à redução do tempo requerido para a produção de determinado valor graças, por um lado, à intensificação do ritmo de trabalho ou, por outro, à adoção de técnicas superiores de produção ou de métodos de trabalho mais eficientes). No plano da concorrência, a remuneração da força de trabalho por baixo do seu valor —ou a apropriação pelo capitalista de parte do salário a título de mais-valia— viola a lógica desses métodos de exploração capitalista e, portanto, da teoria da mais-valia, a qual se funda na relação existente entre os dois tempos de trabalho que compõem a jornada (necessário e excedente), tendo com premissa a coincidência entre o valor da força de trabalho e a sua remuneração ou salário; como, neste caso, essa coincidência não se dá, o resultado é um método extraordinário (ainda que freqüente) de exploração do trabalho, ou uma superexploração, que: a) não assegura a reprodução normal da força de trabalho: b) assume a forma enganosa de mais-valia relativa (ao contrário do que supõe a maioria dos autores que se referem à superexploração do trabalho), já que, mantendo invariável a jornada, reduz aparentemente o tempo de trabalho necessário; e c) não pode confundir-se com o conceito de mais-valia extraordinária, ou seja, aquela que o capitalista individual obtém em relação a seus concorrentes, reduzindo o tempo de produção de sua mercadoria, mas não o valor desta (uma vez que este se estabelece de acordo às condiçoes médias e não às condiçoes individuais de produção).
[4] Este é o sentido das medidas contempladas por Marx e Engels no programa da revolução proletária, incluído no Manifesto Comunista.
[5] "...em nosso país, a revolução política e social precedeu à revolução cultural, essa mesma revolução ante a qual, não obstante, nos encontramos agora" —diz Lenin, em um de seus últimos escritos, acrescentando: "Esta revolução cultural seria hoje suficiente para converter nosso país em um país completamente socialista, mas apresenta imensas dificuldades, tanto de caráter puramente cultural (pois somos analfabetos) como material (pois, para ser cultos, devemos alcançar certo desenvolvimento dos meios materiais de produção, devemos ter certa base material)". "Sobre el cooperativismo", Obras Completas, vol. 36, p. 502-503. Sobre a questão, ver, de Antonio Sánchez García, Lenin y la revolución cultural, México, ERA, 1975.
[6] Isto foi o que Rousseau vislumbrou, ao ocupar-se do tema da desigualdade, e que o levou quase ao ponto de ruptura com a ideologia burguesa. Entretanto, sua fidelidade ao pequeno produtor e, pois, à pequena propriedade impediu-o de dar o salto —do que se aproveitou a burguesia para, mesmo a contragosto, proceder à recuperação da sua doutrina.
[7] É mais desenvolvida porque a classe que a utiliza conta com o Estado —não tanto como instrumento de coerção, mas sim de pressão econômica— para apoiá-la; v.g., a prioridade às cooperativas agrícolas para a obtenção de recursos do Estado.
[8] O monopólio da força pelo Estado é uma invenção burguesa, na luta contra a ordem feudal. O maior grau de dispersão da força é o que se verifica no Estado escravista, onde a coerção sobre a classe dominada é atribuição de cada proprietário de escravos.



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