segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

MEMORIA - "6. A guisa de balanço"


6. A guisa de balanço
Um trabalho desta natureza ficaria incompleto, sem uma tentativa de auto-objetivação, isto é, se n o procurasse perceber, de modo relativamente impessoal, a maneira pela qual outros viram a minha atividade intelectual, ao longo do seu desenvolvimento. A maneira que encontro para fazê-lo - necessariamente limitada, na medida em que só pode dar conta das reaç es de intelectuais iguais a mim - consiste em proceder a uma resenha da aceitação ou do rechaço aos meus escritos. Além das limitaçôes inherentes a esse procedimento, o resultado a que chegue será ainda mais insatisfatório, pelo fato de que me ocuparei apenas do que sei, sem recorrer a uma pesquisa ex professo.
Ao considerar a repercussão do mue trabalho intelectual nos meios científicos e acadêmicos, distingo três momentos. O primeiro, que se inicia com a publicação dos artigos que escrevi no México e vai até 1973, corresponde à livre utilização por outros de conceitos por mim elaborados, sem o cuidado de identificação da fonte, possivelmente por tratar-se de autor pouco conhecido. A essa regra geral escaparam, a rigor, Frank, 1967, e Martins, 1972. Esta é, também, a fase em que começam a surgir trabalhos - em sua maioria, teses de graduação - inspirados e, às vezes, orientados por mim. Ao final dela, registra-se a primeira manifestação explícita de divergência comigo - Cardoso, 1972 - e uma observação premonitória: "La originalidad del ensayo de sistematización del problema (da dependência) hecho por Marini ... da al texto un gran valor, si bien no lo exime de contener partes muy controvertibles" (De Los Ríos, 1973, referindo-se ao artigo de Sociedad y Desarrollo que contém a primeira versão de Dialéctica de la dependencia).
Eu veria logo esse duplo aspecto do meu trabalho, ao deixar o Chile. Com a publicação de Dialéctica de la Dependencia, começa a segunda fase do processo que estou examinando: junto à utilização ampla - e, agora, reconhecida - do meu trabalho, como base teórica e metodológica, por parte de muitos estudiosos (em geral, jovens), ele passa a ser discutido, questionado e - quase sempre, com paixão e, até, com má intenção - atacado. Assinalei, a seu tempo, que não vivi isoladamente essa experiência, que se verificava no contexto da crítica à teoria da dependência, que se inicia em 1974. Não há dúvida, porém, que, à exceção de Frank, minha obra foi o alvo mais visado - o que não se pode dissociar, a meu ver, da posição política que lhe corresponde.
Assim, recém publicado o meu livro, aparecia, ao lado do elogio de Blanco Mejía, a crítica de Arauco, 1974, ao conceito de superexploraçào - por ele identificado ao de mais-valia absoluta, erro em que não seria o primeiro nem o último a incorrer - enquanto Cueva, 1974, num ensaio que marcou época, abria fogo contra o dependentismo como escola, aí incluidos Frank, Cardoso, Theotônio dos Santos, Vania Bambirra e eu. Os trabalhos de Arauco e de Cueva, apresentados ao XI Congresso Latino-Americano de Sociologia, na Costa Rica, foram produto de discuss es internas no CELA-UNAM, a que eu recém me incorporara, mas das quais n o participei, e deram início à ofensiva contra a teoria da dependência. Em texto mais recente, referindo-se a isso, Cueva afirma que "nunca pensamos que nuestras críticas de mediados de los años 70 a la teoría de la dependencia, que pretendían ser de izquierda, podrían sumarse involuntariamente al aluvión derechista que después se precipitó sobre aquella teoría" (Cueva, 1988).
No que me diz respeito, o ponto culminante da ofensiva situa-se em 1978, com os trabalhos de Serra/Cardoso e Castañeda/Hett. Mas é, também, quando me encontro com a primeira tentativa séria para, sobrepondo-se ao calor da polêmica, recuperar em outro nível algumas das questoes suscitadas na discussão: em Leal, 1978, o autor, partindo da teoria marxista do processo de trabalho, examina sucessivamente Baran (cap. I), Frank, Cardoso/Faletto e Prebisch (cap. II) e Marini (cap. III), com o fim de determinar em que medida esses autores contribuem a fundar uma teoria do capitalismo latino-americano. Independentemente de concordar ou não com as conclusoes a que chega Leal, o caminho por ele escolhido é, sem dúvida, o mais adequado para passar daquilo que foi capaz de pensar a teoria da dependência a um tipo de conhecimento superior. Essa será, de resto, a tendência que se afirmará nos estudos sobre o assunto, uma vez serenados os ânimos.
Da produção desse período, cabe destacar Arroio/Cabral, 1974; Osório, 1975; Fröbel/Jürgen/Kreye, 1977; Bambirra, 1978; Castro Martinez, 1980; Torres Carral, 1981, e Chilcote/Johnson, 1983, assim como a maioria das teses que, orientadas por mim, foram defendidas no México, a diferentes níveis, entre 1980 e 1984, como obras que contribuiram a ampliar meu horizonte de pesquisa e a refinar meu instrumental de análise. A dois trabalhos, porém, por razoes diametralmente opostas, acho necessário fazer referência especial. O primeiro - Osório, 1984 - estuda o desenvolvimento do pensamento latino-americano, a partir da teoria da dependência, e o nexo existente entre ele e o processo sócio-político da região, iluminando, sob muitos aspectos, as origens e motivaç es das express es teóricas que esse pensamento assumiu. O segundo - Mantega, 1984 - toma o que supôe ser o moderno pensamento marxista no Brasil, considerando as obras de Caio Prado Jr., Frank e Marini, para, com base em um enfoque ideológico e muita desinformação (a ponto de citar apenas, dos meus trabalhos, a edição de 1969 de Subdesarrollo y revolución e a tradução por uma revista brasileira de um de meus artigos de 1965 - que, como já indiquei, serviram de insumo ao livro em questão-), concluir com um requisitório anti-trotskista, que não só carece de sentido, como surpreende por sua intolerância, além de ser já anacrônico.
Com efeito, a partir de 1984, a atitude em relação a meu trabalho e, em geral, à teoria da dependência entra numa nova fase, que toma dois caminhos, mesmo quando reincide no estilo do segundo período (Cismondi, 1987): o primeiro consiste em considerar um e outra como fatos de necessário registro, na história do pensamento latino-americano, e o segundo, em buscar, na trilha por eles aberta, novos desenvolvimentos teóricos. Vale mencionar, no primeiro caso, Bottomore, 1988, e Kay, 1989 - e, mesmo, Davydov, 1985-1986, por muito que este se ressinta do atraso da teoria social na União Soviética -; e, no outro, Kuntz, 1984; Dussel, 1988; Cueva, 1988 e 1989, e Osorio, 1990, que procuram recuperar e transcender, no plano do marxismo, a teoria da dependência. Vale também mencionar Bordin, 1988, que se serve dela para reinterpretar os fundamentos e as projeç es da teologia da libertação.
Cabe concluir insistindo num traço peculiar da teoria da dependência, qualquer que seja o juízo que dela se faça: sua contribuição decisiva para alentar o estudo da América Latina pelos próprios latino-americanos e sua capacidade para, invertendo por primeira vez o sentido das relaç es entre a região e os grandes centros capitalistas, fazer com que, ao invés de receptor, o pensamento latino-americano passasse a influir sobre as correntes progressistas da Europa e dos Estados Unidos; basta citar, neste sentido, autores como Amin, Sweezy, Wallenstein, Poulantzas, Arrighi, Magdoff, Touraine. A pobreza teórica da América Latina, nos anos 80, é, numa ampla medida, resultado da ofensiva desfechada contra a teoria da dependência, fato que preparou o terreno para a reintegraçào da região ao novo sistema mundial que começava a se gestar e que se caracteriza pela afirmação hegemônica, em todos os planos, dos grandes centros capitalistas.

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