quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

MEMORIA - "2. O primeiro exílio"

2. O primeiro exílio
Não conhecia ninguém ali. Mas, no aeroporto, esperava-me o reduzido grupo de asilados que vivia no país -cerca de vinte-o qual me proporcionou, assim como as autoridades mexicanas, uma acolhida reconfortante. Entre os muitos amigos que fiz -além de Maria Ceailes, combativa militante das Ligas, com quem compartilhara o asilo na Embaixada- recordo, com especial carinho, Carlos Taylor, comunista histórico, homem de grande coração e de caráter reto, que fora no Brasil presidente da União Nacional dos Servidores Públicos e que, depois de bons serviços prestados ao México, ali veio a falecer, em 1978; Alvaro Faria, cuja idade relativamente avançada em nada diminuíra o seu entusiasmo pela filosofia e pela política e graças a quem privei, também, da amizade de Rodolfo Puiggrós, há muitos anos exilado no México e que ministrava, na Escola de Economia da UNAM, o único curso de marxismo daquela universidade; e Cláudio Colombani, estudante de engenharia de São Paulo, que me fez perceber o quanto era grande, entre a juventude do PCB, a revolta contra o reformismo e o acomodamento da sua direção. Reencontrei, também, Andre Gunder Frank, lecionando então na UNAM, o qual me facilitou os primeiros contactos com intelectuais e militantes políticos mexicanos.
Aos quinze dias da minha chegada e depois de sofrer uma decepção -Pablo González Casanova, um dos poucos intelectuais que eu conhecia de nome e que me recebeu com carinho e solidariedade, deixara a direção da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais, da UNAM, sendo substituído por Enrique González Pedrera, que simplesmente não me recebeu- obtive, através de Mario Ojeda Gómez, então diretor do Centro de Estudos Internacionais do Colégio do México -o qual, além de calidamente solidário, era um entusiasta do Brasil- um lugar na instituição. Entre os colegas de quem guardo melhor lembrança, nesses primeiros tempos de Colégio, estão, além do próprio Ojeda, Olga Pellicer de Brody, antiga companheira de SciencesPo; Rafael Segovia, cujo ceticismo e ironia incitavam ao rigor; Víctor Urquidi, desenvolvimentista ilustre, mas capaz de respeitar o direito de opinião; Roque González Salazar, homem inteligente e cheio da alegria de viver; e, principalmente, José Thiago Cintra, que eu conhecera ligeiramente no Brasil e que fazia uma pós-graduação em estudos orientais, o qual acabou por se tornar um de meus amigos mais queridos.
A primeira tarefa que me coube foi a de escrever um artigo para a conceituada revista do CEI, Foro Internacional, sobre os acontecimentos recentes no Brasil. As interpretaçôes correntes sobre o golpe de 1964, além de considerá-lo mais uma simples quartelada, apresentavam-no essencialmente como resultado da intervenção norte-americana, um corpo estranho, de certo modo -ou, como dissera Leonel Brizola, um raio no céu azul- à lógica interna da vida brasileira. Meu ponto de vista era radicalmente oposto: a ação dos Estados Unidos no Brasil não se podia entender como alheia à realidade nacional, mas como elemento constitutivo dela e só pudera se tornar efetiva (e, portanto, só se explicava) à luz da luta de classes no país, que fincava suas raízes na economia e determinava o jogo político -e da qual as Forças Armadas eram parte plena. Com base na magra informação factual e estatística que pude levantar, suprida por meu conhecimento direto e pela minha vivência, dediquei os dois primeiros meses no Colégio à demonstração dessa tese, daí resultando meu artigo "Contradicciones y conflictos en el Brasil contemporáneo" (escrito, à guisa de exercício, em castelhano) -que se baseava, numa ampla medida, no relatório sobre a situação política brasileira, que eu apresentara na última reunião do Comitê Central da Polop de que eu participara, realizada em março de 1965. Tendo passado pelo crivo da crítica de Segovia, o artigo teve sua aceitação decidida pelo Conselho Editorial de Foro Internacionalgraças ao peso da opinião de Urquidi, que declarou ter enfim lido alguma coisa que permitia entender o que ocorrera no Brasil.
A importância desse artigo foi o de colocar sobre outras bases a explicação do processo brasileiro pós-1930, influenciando consideravelmente análises posteriores. Os ecos dessa influência podem perceber-se na maioria dos estudos que se escreveram depois sobre o tema, menos em autores que me citam explicitamente (por exemplo, Dreyfus, 1981, que volta a privilegiar o papel da intervenção norte-americana) que em outros, que não o fazem (por exemplo, Oliveira e Mazzuccheli, 1977, particularmente em sua intenção -nem sempre bem sucedida- de privilegiar os "fatores internos" e, sobretudo, em sua avaliação do segundo governo Vargas). A nível do Colégio, o artigo deu-me prestígio e motivou minha inclusão no corpo editorial de Foro Internacional, onde permaneci até deixar a instituição, em 1969.
Estimulado pela repercussão desse ensaio, tanto no Colégio como fora dele, e buscando penetrar na natureza profunda dos acontecimentos brasileiros, escrevi (ainda em 1965) dois outros - além de trabalhos menores, publicados em órgãos sindicais e estudantis, dos quais o mais importante era a revistaSolidaridad, editada pelo Sindicato dos Eletricistas, um dos mais poderosos e o mais avançado, então, do México. O primeiro deles -atendendo a uma sugestão de Frank, no sentido de que eu escrevesse algo para Monthly Review- foi dedicado, já não ao processo de luta de classes de que resultara o golpe militar, mas às suas causas econômicas profundas e às suas conseqüências, particularmente no plano latino-americano. Escrito também em espanhol, foi publicado, naquele ano, em Nova Iorque, sob o título "Brazilian Interdependence and Imperialist Integration", saindo a versão original em Selecciones en Castellano de Monthly Review, que se editava então em Buenos Aires.
Nele, modificando o enfoque, eu colocava em primeiro plano as transformaçôes da economia mundial no após-guerra (especialmente a centralização de capital nos Estados Unidos e seu efeito sobre as exportaçôes de capitais) e seu impacto na economia do Brasil e na diferenciação da sua classe burguesa, para examinar, à luz desses fenômenos, a política exterior brasileira nos anos 60 e suas implicaçoes para a América Latina. Esse estudo teve três resultados importantes.
Primeiro, impulsionou a superação do enfoque meramente institucional -e, freqüentemente, jurídico- que privava nas análises da política exterior latino-americana, motivando os estudiosos a investigar suas determinaçôes econômicas e de classe (efeito inicialmente sentido no próprio Colégio do México, mas, direta ou indiretamente, estendido depois ao Brasil, começando com a análise pioneira de Martins, 1972). Segundo, despertou maior atenção para a mudança operada nos movimentos de capital no após-guerra, com vantagem para os investimentos diretos na indústria, tese que se constituiria em um dos pilares da teoria da dependência, principalmente pelas implicaçôes do fenômeno na diferenciação interna da burguesia, que eu apontava no artigo e que sustentavam o conceito de "burguesia integrada" que eu ali expunha (ver, entre outros estudos, Santos, 1976, principalmente seu trabalho mais difundido, "O novo caráter da dependência", escrito originalmente em 1966, e Cardoso e Faletto, 1969, primeira versão em 1967, sobretudo o seu conceito de "burguesia associada"). Terceiro, levantou a questão do subimperialismo, que tratei ali pela primeira vez e que despertou particular interesse em círculos intelectuais argentinos e uruguaios, assim como de brasileiros que os integravam, graças à difusão que deu ao meu ensaio sua publicação em Buenos Aires. Esse interesse levaria um grupo ligado à revista Marcha, de Montevidéu, em que se destacaram Vívian Trias e Paulo Schilling, a desenvolver novas elaboraçôes sobre o tema, através das quais, por um lado, operou-se um deslizamento em direção ao que se poderia chamar de "teoria do satélite privilegiado" -distinta, em substância, da tese que eu levantara- e, por outro lado, descobriu-se e mesmo se hipervalorizou a doutrina geopolítica, até convertê-la em clave explicativa do fenômeno -o que também estava longe de coincidir com a visão que eu dele tinha (as elaboraçôes mais acabadas dessa corrente, em versão bem posterior, podem ver-se em Trías, 1977, e Schilling, 1978).
O segundo artigo (de fato, o terceiro) deveu-se a Jesús Silva Herzog, diretor da tradicional revista Cuadernos Americanos, que, procurado por mim, manifestou interesse em um artigo inédito, na linha dos anteriores; escrito também em castelhano, foi publicado em 1966, sob o título "La dialéctica del desarrollo capitalista brasileño". A diferença do primeiro ensaio, centrado no processo sócio-político brasileiro, e do segundo, mais preocupado com a articulação da economia brasileira com o sistema imperialista e as implicaçôes disso para a América Latina, este terceiro estudo procurava sintetizar os dois enfoques, com o propósito de desvendar as grandes linhas do processo histórico do Brasil moderno e a gestação das condiçôes da revolução socialista. Este último aspecto iluminava toda a análise e foi, efetivamente, com o título de "El carácter de la revolución brasileña" que o ensaio se republicou, em 1970, em Pensamiento Crítico, a revista cubana de mais prestígio naquela época e que se destacava por sua ousadia teórica e política.
Ao terminar o ano de 1965, ocorreu algo que influiu profundamente na minha trajetória intelectual. O curso de graduação do CEI incluía uma disciplina sobre a América Latina, centrada principalmente em questôes de política exterior, como indicava a sua denominação: História Diplomática da América Latina. Naquela época, o México era ainda um deserto em matéria de estudos latino-americanos, como atesta o fato de que -além de ser a única no gênero, em um curso de relaçôes internacionais- essa disciplina fosse sempre ministrada por um especialista norte-americano. O que sucedeu, naquele ano, é que o professor dela encarregado -de nome conhecido, mas que não recordo agora- teve um impedimento de última hora, criando um problema para o cumprimento normal do currículo em 1966. O razoável prestígio que eu me granjeara no Colégio, somado ao fato de ser brasileiro e ter portanto certa noção do que ocorria no Cone Sul, levou a direção do CEI a me assumir como latino-americanista e a solicitar minha colaboração para a solução do problema. Assim foi como me converti, de fato, em titular da disciplina, durante o resto da minha permanência no Colégio.
Na realidade, salvo informação direta e noçôes superficiais sobre o tema, adquiridas durante a minha estada na França, eu não sabia muito sobre a América Latina. Por cerca de três meses, dediquei-me, pois, ao estudo da bibliografia disponível, utilizando principalmente a biblioteca do Colégio -bastante boa, nesse particular. Ali, à parte estudos nacionais, na maioria clássicos, e uma ou outra tentativa de teorização mais geral (como os trabalhos da Cepal e os obras de Gino Germani e Torcuato S. Di Tella), fiz a desagradável constatação de que os estudos latino-americanos provinham essencialmente dos países desenvolvidos -principalmente Estados Unidos, Inglaterra e França, nessa ordem- e padeciam, no mais das vezes, de um paternalismo elitista, que me recordava os cursos de Balandier, em SciencesPo.
Organizei o programa, buscando combinar certas formulaçôes de caráter global com a análise por países e excluindo a América Central e o México, não só por serem suficientemente -no caso do México, amplamente- tratados em outras disciplinas, como também para evitar problemas políticos. A metodologia era, essencialmente, a que eu desenvolvera nos meus trabalhos sobre o Brasil, levando a que as questôes de política exterior, além de se enfocarem a partir de suas determinaçôes sócio-econômicas, constituíssem apenas uma dimensão do objeto de conhecimento construído no curso. Quando necessário, o programa introduzia o exame de categorias e teses marxistas, já que era no marxismo que ele se fundamentava. Essas modificaçôes fizeram com que o curso viesse a intitular-se, mais tarde, Problemas Internacionais da América Latina.
O êxito alcançado juntos aos alunos -um grupo particularmente brilhante, é justo reconhecer, e que trabalhava em regime de tempo integral- chegou a me criar embaraços, junto à direção e a colegas do corpo docente. Em seu entusiasmo, os estudantes fizeram-me objeto de endeusamento, ao mesmo tempo que estabeleciam comparaçôes entre meu curso e os demais, que resultavam ser pouco lisonjeiras para estes; pior ainda, assumiram posiçôes esquerdizantes, que destoavam na torre de marfim que a instituição se orgulhava de ser. Devo ser honesto: a minha opção teórica e política sempre foi respeitada no Colégio, enquanto ali estive, e se manteve invariável o cálido tratamento que me era dispensado, no terreno pessoal e profissional. Mas, de maneira bem mexicana, a direção do CEI tomou certas providências -como a de, para os futuros grupos, deslocar o curso de uma posição intermédia para o final do currículo e exercer sobre os estudantes, antes de que eles chegassem às minhas mãos, uma influência neutralizadora. Não surpreende, assim, que -ao ministrar de novo o curso, em 1968- eu me defrontasse com um grupo de alunos que passou à história do Colégio com a designação de cool generation.
Como quer que seja, a repercussão do curso de 1966 levou o CEI a criar, em 1967, um seminário sobre a América Latina, a nível de pós-graduação -iniciativa pioneira no México e, até onde sei, na América Latina, se descartamos as que correspondiam a organismos internacionais, de cunho mais especializado. Encarregado de sua coordenação, estabeleci para ele um programa flexível, cuja linha central era assegurada por mim, mas que incluía conferencistas, já para tratar temas previamente estabelecidos, já para intervir em determinadas áreas do programa, a partir de sua própria especialidade. Nesse contexto, além de convidar especialistas mexicanos e norte-americanos, aproveitei a passagem pelo país de intelectuais latino-americanos, em particular brasileiros, como Celso Furtado, Hélio Jaguaribe e Octávio Ianni. O curso foi bem sucedido, firmando minha posição no Colégio, e me proporcionou a possibilidade de conversar com os brasileiros sobre a situação nacional. Lembro-me, especialmente, da discussão que mantive com Celso Furtado, uma noite, no Café de Las Américas, juntamente com José Thiago Cintra -Furtado defendendo sua tese sobre a "pastorização", i. e., do retrocesso da economia brasileira ao estádio meramente agrícola, que a ditadura brasileira estaria promovendo (tese que ele havia exposto em seu artigo de apresentação ao número especial de Temps Modernes sobre o Brasil, publicado em 1966, que Siglo XXI editaria logo com o título de Brasil hoy); eu, insistindo no eixo central da minha reflexão sobre o Brasil, ou seja, na idéia de que a ditadura correspondia à dominação do grande capital nacional e estrangeiro e impulsionava a economia do país a uma etapa superior do seu desenvolvimento capitalista.
Em 1967, ainda, atento à reunião que se realizava no México sobre a proposta mexicana de desnuclearizaçào da região, de que resultaria o Tratado de Tlatelolco, escrevi, em colaboração com Olga Pellicer de Brody, o artigo "Militarismo y desnuclearización en América Latina". Nele, a par da denúncia sobre a atuação da delegação brasileira na conferência, que descaracterizara o objetivo do México e fizera do tratado algo de pouca eficácia, mostrávamos que essa atitude correspondia ao propósito da ditadura de desenvolver no Brasil uma indústria bélica importante, como base da política expansionista que ela praticava. O artigo publicou-se em Foro Internacional, despertando a atenção dos especialistas do Colégio para o tema e motivando duas teses de graduação no CEI (Lozoya, 1969, e Vargas, 1973).
A fins desse mesmo ano, durante uma quinzena de férias, em Zihuatanejo, e atendendo a uma solicitação da revista Tricontinental -lançada, em Havana, no contexto da mobilização revolucionária que se constituiria na linha central da política exterior cubana, nos anos seguintes- escrevi o artigo "Subdesarrollo y revolución en América Latina". Este viria ser o meu trabalho mais conhecido internacionalmente, já em virtude da grande difusão da revista (que se editava em espanhol, inglês e francês e se distribuía mundialmente), já pelas muitas republicaçôes de que foi objeto; destacam-se, entre estas, a da edição em castelhano de Monthly Review (que, após o golpe de 1966 na Argentina, editava-se agora em Santiago do Chile), a do reading elaborado por Bolívar Echeverría e publicado em Berlim com o título Kritik des bürgerlichen Anti-Imperialismus, e a do reading editado por Feltrinelli, denominado Il nuovo marxismo latinoamericano. Esse ensaio, que reflete o essencial das investigaçoes que eu vinha realizando, desde fins de 1965, resume seu conteúdo na declaraçào inicial -"a história do subdesenvolvimento latino-americano é a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial"- e se dedica a demonstrar que esse subdesenvolvimento é simplesmente a forma particular que assumiu a região ao se integrar ao capitalismo mundial.
Em 1968, a convite de Leopoldo Zea, também professor no Colégio, que desenvolvia a iniciativa pioneira de criar um Centro de Estudos Latino-Americanos na Faculdade de Filosofia, da UNAM, assumi neste -além da direção de um seminário sobre a América Latina, para graduados e pós-graduados- a cátedra do curso História do Brasil e seus Antecedentes Portugueses, que teve singular destino. Como se tratava de um curso de dois semestres, destinei o primeiro a expor a teoria e o método marxistas, discutindo como aplicá-los ao estudo da América Latina; e o segundo a, sobre essa base, analizar o processo econômico, social e político do Brasil. O interesse que despertou o curso provocou, não só um notável aumento do número de alunos, motivando sucessivas mudanças de sala até chegar a um auditório, mas também a modificação qualitativa do alunado, que passou a vir de diferentes faculdades, tanto da área de humanidades como da de ciências exatas e naturais. Na realidade, ali se reuniu a vanguarda estudantil da UNAM -a ponto de, após a repressão ao movimento estudantil, em outubro daquele ano, ter-me sido sugerido, meio em zombaria e meio a sério, que eu fosse ministrá-lo na prisão.
Por pressão dos estudantes, fui levado a realizar também um seminário de leitura de O Capital. Dificuldades institucionais fizeram com que este se realizasse em minha casa, nas manhãs de sábado, com a participação de estudantes e professores jovens do Colégio e da UNAM. Essa iniciativa, sem precedentes naquela época, viria a dar seus frutos, como constatei quando, voltando ao México em 1972, me deparei com vários seminários desse tipo, tendo à frente participantes do de 1968.
1967 e 1968 foram, assim, aqueles anos em que, após consolidar minha posição no Colégio, me projetei aos círculos intelectuais e políticos mexicanos e iniciei meu lançamento no plano internacional. Foram, além disso, anos de situação econômica folgada. Com efeito, desde meados de 1966 -por mediação de seu filho, aluno meu no Colégio- conheci Gonzalo Abad Grijalva, funcionário destacado da UNESCO, que dirigia um órgão mantido por esta, a OEA e o governo do México -o Centro Regional de Construçoes Escolares para a América Latina (CONESCAL)-, ao qual me integrei com o cargo de Educador. Composto em sua quase totalidade por arquitetos e engenheiros e dedicado a questôes eminentemente técnicas, CONESCAL acabou por se constituir em um excelente ambiente de trabalho para mim: cercado de consideração, fiz amizades de saudosa lembrança (em especial, Oswaldo Muñoz Marín, Marín Reyes Arteaga, Alejandro Unikel, Carlos Osorno e minha secretária Magdalena, sem contar o próprio Abad) e, além de ampliar os meus horizontes com conhecimentos de arquitetura, urbanismo, artes plásticas e engenharia, pude aprofundar-me no estudo da realidade econômica e social latino-americana. Ali, participei dos cursos internacionais realizados anualmente pela instituição, desenvolvi pesquisas de caráter técnico (daí resultando dois informes de certo alcance, um sobre a formação tecnológica na América Latina e outro, de cunho mais coletivo, sobre uma nova metodologia arquitetônica para as construç es escolares) e publiquei um par de artigos na revista do Centro. Destes artigos, havia um que versava sobre a questão educacional na América Latina e que serviu de base para minhas reflexôes sobre o tema dos movimentos estudantis, que estavam então em ascensão. Permaneci em CONESCAL até 1969, quando, preparando-me já para deixar o México, me demiti.
Ainda em 1968, instado por Cláudio Colombani, comecei a escrever colaborações não periódicas para o influente e oficialista jornal El Día, na seção intitulada Testemunhos e Documentos. Em maio, entusiasmado com as ações do movimento estudantil brasileiro, escrevi um artigo de página inteira, no qual analizava suas motivaçôes e definições programáticas, sua dinâmica e suas táticas de luta. Por razões nunca aclaradas, ele foi publicado em agosto, pouco depois da eclosão do movimento estudantil-popular, que, em julho, sacudiu o stablishment mexicano até seus alicerces e se constituiu em um dos mais importantes pontos de ruptura na história do país. Inutilmente eu me muni de carta do jornal, na qual este assumia a responsabilidade pela infeliz coincidência. O fato -somado a meus antecedentes políticos, minha atividade docente e uma conferência pública, no Colégio, sobre a questão estudantil latino-americana- tornou pesado o ambiente que me cercava, até em minha casa (que passou a ser vigiada e a sofrer censura telefônica); no órgão da Secretaria de Gobernación, encarregado do controle dos asilados, recebi tratamento francamente hostil. Ao ter lugar, em outubro, a repressão governamental, com o massacre de Tlatelolco, minha situação se tornou insustentável.
Optei, então, por me entrevistar com a mais alta autoridade na matéria, o sub-secretário de Gobernación. Fria e polidamente, este me deu a versão oficial do que se passava: os bons "muchachos" mexicanos haviam sido envenenados por agitadores estrangeiros e se haviam voltado contra o seu país: no entender do governo, eu era um dos principais responsáveis pelo que ocorrera. Pareceu-me inútil argumentar e me limitei a indagar se isso significava que o governo queria que eu fosse embora. -O senhor está sob a proteção do governo do México; este veria, porém, a sua partida como um gesto de colaboração para que as coisas se normalizem- respondeu-me ele, com inalterável polidez. -Muito bem. De que prazo eu disponho? -perguntei. -Como, prazo? O senhor tomou uma decisão, ninguém o está expulsando- foi a resposta.
Depois disso, a pressão direta (vigilância, censura, etc.) cessou. Naturalmente, procurei demonstrar na prática minha intenção de cumprir o acordo: após renunciar a CONESCAL, reduzi minha participação no Colégio e me afastei da UNAM. Ou, pelo menos, eu pensava estar agindo assim: tempos depois, viria a saber que -sem nenhuma exigência, é verdade, de que eu fosse despedido- essas instituições haviam sido instruídas, por escrito, pela Secretaria de Gobernación no sentido de evitar relacionamento meu com estudantes.
Acionando os amigos que se encontravam asilados em outros países, criei oportunidades de saída e acabei por me decidir pela Argélia, passando pela França (correspondência com Miguel Arraes abrira-me as portas daquele país e levou-me, algum tempo depois, a prefaciar a edição mexicana de seu livroBrasil: pueblo y poder). Entretanto, para surpresa minha, a autorização de saída me foi negada. Voltando a falar com a mesma autoridade de Gobernación, esta justificou a negativa em virtude de acordo existente com a ditadura brasileira, no sentido de impedir meu deslocamento para centros de reunião de exilados -o que descartava, também, a França, o Uruguai e o Chile- a menos que, renunciando ao asilo, eu descarregasse o governo mexicano de qualquer responsabilidade sobre os meus atos. É o que eu acabaria por fazer.
Embora esse processo tenha levado quase um ano, é justo ressaltar que, feito o acordo verbal com Gobernación, não voltei a ser incomodado. Pude, inclusive, sem estorvos, manter estreita relação com os presos políticos libertados pela ditadura em função do sequestro do embaixador norte-americano, que o México acolheu. Entre eles, estavam Vladimir Palmeira e José Dirceu, líderes do movimento estudantil de 1968, além de Ricardo Villas e Teca. Foi, para mim, excelente ocasião para discutir os problemas da esquerda brasileira -descobrindo, também, que os meus ensaios sobre o Brasil haviam tido no país uma ampla difusão clandestina, inclusive com uma consolidação mimeografada, publicada pela União Metropolitana de Estudantes do Rio, sob o títuloPerspectivas da situação econômica brasileira, do qual só muitos anos depois me chegou às mãos um exemplar.
Uma pequena anedota revela como eu me tornara conhecido dos jovens militantes de esquerda e, ao mesmo tempo, a visão distante que eles tinham de mim. Ao chegar o grupo ao aeroporto do México, este foi cercado por um forte dispositivo de segurança e não pude trocar mais que algumas palavras com Vladimir, aproveitando para dizer que eu passaria mais tarde no hotel. Quando ele comunicou isso aos seus companheiros, Ricardo Villas, pouco mais que um garoto, caiu dos céus: -"Mas o Ruy Mauro Marini existe, mesmo?"-indagou, incrédulo, ante a inesperada materialização do que não fora, até então, mais do que um rótulo de textos de formação política.
Com as minhas atividades reduzidas, durante 1969, dediquei-me principalmente à direção de teses de graduação no Colégio. Três delas chegaram a ser apresentadas, ainda quando eu me encontrava no México: a de Jorge Robledo, venezuelano, de quem não mais tive notícias, sobre El movimiento estudiantil venezolano, que se inspirava nas minhas preocupaçôes sobre o tema e versava sobre a revolução de 1958 e a luta de classes subseqüente; a de René Herrera Zúñiga, nicaraguense, hoje professor e investigador no Colégio, com título que não recordo, sobre o processo sócio-político da Nicarágua e o fenômeno Somoza; e a de Carlos Johnson, mexicano-norte-americano, atualmente lecionando na UNAM, sobre a coerência interna do movimento dos países não-alinhados, medida através das votaçôes na ONU. Ficaram encaminhadas as de Ricardo Valero Becerra, mexicano, que viria a ter brilhante carreira na diplomacia e na política, sobre Fundamentos y tendencias de la política exterior brasileña, dedicada ao exame das determinaçôes sócio-econômicas da política exterior do Brasil nos anos 50, e a de Gonzalo Abad Júnior, equatoriano, hoje funcionário internacional, sobre a luta de classes no Equador, ambas apresentadas depois da minha saída do México.
Coube-me, também, em 1969, atendendo a convite de Pablo González Casanova, então diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas (IIS), da UNAM, participar do livro por ele organizado, Sociología del desarrollo económico (Una guía para su estudio), em convenio com um centro da UNESCO em Paris. Cada seção deveria conter um exame das tendências da disciplina considerada e uma bibliografia comentada. Respondi pela seção de sociologia política. O texto introdutório publicou-se também, isoladamente, na revista colombiana Desarrollo Indoamericano, dirigida por José Consuegra, na qual colaborei durante algum tempo.
Paralelamente, com o apoio entusiasta de Cláudio Colombani, ocupei-me ainda, naquele ano, da preparação de um livro, baseado nos trabalhos que publicara no período e pelo qual Arnaldo Orfila Reynal, fundador e diretor de Siglo XXI, manifestara interesse. Abrindo com o ensaio de 1967 sobre a América Latina, reuni ali meus estudos sobre o Brasil (reformulando, para incluir minhas considerações sobre a indústria bélica, o que se referia à política exterior) e acrescentei um ensaio sobre a problemática da esquerda, que muito deve às discussôes que tive com os presos políticos libertados, em particular Vladimir Palmeira. Problemas da editora atrasaram o seu lançamento, de maneira que, quando isto ocorreu, ao término do primeiro trimestre do ano seguinte, eu já havia deixado o México.
Subdesarrollo y revolución é, pois, um texto datado, centrado prioritariamente sobre a análise dos problemas brasileiros, mas que alcançou grande difusão nos anos 70, com reediçôes quase anuais, e que entrou, inclusive, já perdendo força, na década de 80. A meu ver, o interesse que despertou deve-se, em parte, à novidade do enfoque -inserido como está o livro na corrente das novas idéias que cristalizaram na teoria da dependência; em parte, à metodologia, que buscava utilizar o marxismo de modo criador para a compreensão de um processo nacional latino-americano, e, finalmente, à sua audácia política, que rompia com o academicismo timorato e asséptico que primara, até então, nos estudos dessa natureza. O último capítulo, sobretudo, que aborda os problemas da esquerda armada e o faz de dentro (o único precedente, nesta linha, havia sido Revolução na revolução?, de Régis Debray, em 1967), suscitou entusiasmo na intelectualidade jovem e, em geral, na militância de esquerda (assim, esta promoveu, na Itália, sua publicação na edição local de Monthly Review, apesar de já estar ali em curso uma tradução do meu livro); em compensação, ele chegou a provocar desconforto nos editores, que -não tendo tido conhecimento prévio do texto, por mim entregue diretamente à gráfica, quando já estava em marcha a impressão do livro- temeram, ao vê-lo publicado, que a empresa resultasse comprometida.
Problemas, é certo, o livro criou, mas em países como Brasil e Argentina, que apreenderam e destruiram remessas inteiras dele. Na maior parte da América Latina, porém, e no México em particular, ele foi um sucesso, que logo chegou à Europa. Em 1972, saiu a edição francesa e, em 1974 (com uma introdução que viria a ser meu trabalho mais significativo e em excelente tradução de Laura Gonsalez) a edição italiana, com o título Il sottoimperialismo brasiliano.Um contrato assinado com a Penguin Books não teve seqüência, por razôes que ignoro, mas, em 1975, efetivou-se a edição portuguesa, com base na 5ª edição mexicana de 1974, corrigida e ampliada.
Com ele, fechei com chave de ouro meu primeiro exílio, durante o qual, ao mesmo tempo em que completava minha formação, me realizara profissionalmente. A vitória de Luís Echeverría nas eleiçôes de 1969 -o qual, como secretário de Gobernación, comandara a repressão ao movimento estudantil- e a negativa da França a deixar-me entrar ou passar pelo seu território sem documentação (a qual me era negada tanto pelo governo brasileiro como pelo mexicano) levaram-me a, renunciando ao asilo, decidir-me pelo Chile, onde a situação política poderia facilitar as coisas. Em novembro de 1969, desembarquei em Santiago.

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